O Artista, Seu Público e a Arte

Pequeno ensaio exposto por mim na primeira edição do Arte e Prosa, que ocorreu nesse sábado na Minueto, e que serviu de orientação para a discussão que se seguiu.

O Artista, Seu Público e a Arte

Pedro Jardim

INTRODUÇÃO

O quê diferencia um pôr-do-sol de uma pintura? O quê diferencia uma flor que nasce, ou uma folha que cai de uma árvore de um poema? E qual a diferença entre uma ilustração de um livro de biologia de uma tela de Monet? Ou, o quê diferencia um artigo científico de uma poesia? Ou, uma reportagem bem redigida de um conto em prosa? Será a estética? Será o sentimento? A subjetividade? E o quê é a beleza? O que é Arte, afinal?

Quero introduzir hoje este tema com uma breve discussão sobre o conceito de Arte. Quero desenvolver esse conceito, em termos das relações intrínsecas ao trabalho e exposição artística, sejam elas subjetivas, interpessoais, sociais, ou religiosas.

Uma discussão deste teor nos há de permitir um posicionamento mais crítico em relação ao lugar da Arte no mundo, na vida do homem e, assim, nos fornecer diretrizes sobre o pensar e trabalhar a Arte. Sem discussões desse nível, corremos o risco de sermos reduzidos, como artistas, a modismos e vieses corrompidos gerando uma Arte pobre, irresponsável, morta.

BREVE CONCEITO: TRABALHO

Podem uma chapa de ferro caída no chão, ou algumas vigas metálicas espalhadas, uma árvore tombada, ou um homem vendendo queijo serem uma obra de arte? Bom, se eles foram colocados deliberadamente ali, ou, são deliberadamente capturados, podemos começar a pensar que sim.

Arte não é um feliz incidente completamente casual. O artista é responsável por sua arte; se assim não fora, aquele seria dispensável, seu papel na produção artística seria marginal, ou facilmente substituído pelo vento, a ação da gravidade, propriedades físicas e químicas da água, ou outro material qualquer, ou, na melhor das hipóteses, um animal que age instintivamente, irreflexivamente e estritamente em prol de sua sobrevivência e procriação (e se o homem se tornou dessa forma, certamente aí há alguma coisa errada). Arte é, portanto, deliberada.

Com essa discussão, surgem outras questões. Estou dizendo, então, que o trabalho feito por um passarinho ao construir seu ninho, ou por um galo a cacarejar, um vento a soprar, uma correnteza a desgastar a rocha, o sol pondo-se por traz das montanhas ao emitir luz que propaga-se pelo ar em diferentes comprimentos de onda, – tudo isso não é Arte.

A Arte não é feita pela natureza, ou até mesmo pelo seu Criador. Mesmo que haja beleza na natureza, que nos encantemos por ela, experimentemos sensações em relação com ela e nos ponhamos a refletir sobre questões metafísicas inspirados pela natureza. Arte é, portanto, um trabalho do homem. Somente o homem pode comunicar em aspectos físicos, químicos, biológicos, sentimentais, racionais, históricos, simbólicos, sociais, econômicos, quânticos,morais, religiosos, e ser inteiramente recebido por outro homem, capaz de o compreender plenamente, em toda complexidade. Por isso, até mesmo Deus para se relacionar com o homem, só o pode fazer por meio de outro homem, ou se Ele mesmo se fizer homem – o que seria uma outra discussão. (Obs.: Com relação ao trabalho criacional de Deus, podemos ainda dizer que Ele o executou do nada, ou a partir do nada, o que O difere categoricamente do trabalho humano).

Devemos dizer também, que Arte não é algo metafísico (apesar de incluir aspectos metafísicos), mas é um trabalho executado concretamente. Não que não seja alusiva, ou em certo sentido, “abstrata”, mas que ela precisa de um objeto – seja este, um pedaço de pedra esculpida, uma tela pintada, uma película gravada, uma folha de papel escrita, um som transmitido aos ouvidos, movimentos corporais assistidos, etc. – que a torne tangível aos sentidos de mais de uma pessoa. Arte não é, portanto, imaginação, sonho, emoções, sentimentos – apesar de poder evocá-los (que fique claro); não é algo que o artista sente, imagina, vislumbra, conceba em sua mente; é algo que alguém esculpe, pinta, filma, fotografa, escreve, toca, grava, dança, representa, cozinha, constrói, etc. Arte é ação, trabalho.

BREVE CONCEITO: DIÁLOGO

É claro que ser uma “ação humana deliberada” não é suficiente para uma obra ser considerada arte. Um artigo científico, uma ilustração de um livro de Biologia, uma reportagem, um comercial de um produto qualquer, muitas vezes, aparenta ser arte, mas, será que de fato podemos considerá-los como tal?

Tomemos o exemplo da escrita1. Seja uma poesia ou um artigo científico, apenas pelo fato de serem escritos são capazes de comunicar alguma coisa. Afinal, a escrita é uma forma de linguagem. Há, porém, duas formas de comunicação: o monólogo e o diálogo. Em uma delas, a comunicação é unidirecional; na outra, é bidirecional (uma via de “mão dupla”). Em uma delas, o locutor informa um conteúdo; na outra, ele o compartilha. Em uma delas, o leitor é passivo; na outra, seu papel na comunicação é ativo. Em uma, o conteúdo da linguagem se expõe; na outra, se dispõe.

Para clarear este argumento, vou usar de alguns versos de Mario Quintana:

  • “Arte é sugestão.”
  • “Toda arte é feita de silêncio – inclusive a própria música.”
  • “Livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir – até onde? Uma entrelinha… Leitura interrompida? Não. Essa é a verdadeira leitura continuada.”
  • “Uma das conquistas do cinema sonoro foi a descoberta do silêncio – o silêncio de quando se espera ou se imagina alguma coisa.”

A Arte se revela e se oculta, permitindo que o leitor “espere ou imagine”, com base no que foi dito, aquilo que está escondido no silêncio”. Isso dá a ele a liberdade – e a tarefa – de não apenas ler passivamente, mas de interpretar, atribuir significado. Ele a interpreta a partir de seu contexto, de sua experiência de vida, e, assim, contribui para o diálogo, acrescentando um novo ponto de vista à Arte. Para citar, novamente, Mario Quintana:

  • “A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa… e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.”

Essa liberdade dada ao leitor reside, portanto, no silêncio.

A Arte , então, naquilo que se revela, alimenta o mistério daquilo que está oculto. Nesse sentido, pode-se dizer que a Arte guarda uma sensualidade que não se porta de maneira vulgar. Por isso, Mario Quintana diz que “toda confissão não depurada pela arte é uma indecência”. A Arte só é compreendida plenamente em uma relação profunda de entrega total, quando o leitor e a arte se dispõem um ao outro. E, nessa relação, ao ir compreendendo a Arte, o leitor também se descobre a si mesmo, à medida em que se abre para o diálogo.

Por isso, a relação com a Arte não deve, nunca, ser de consumo, o que seria a sua prostituição. A relação de consumo é uma relação egoísta em que um consumidor consome o prazer ofertado por um mercenário e este consome a riqueza daquele. E ambos saem espoliados, empobrecidos, insaciados deste relacionamento. Quando isso acontece com relação à Arte, nasce uma “cultura do entretenimento”, em que o consumidor é alimentado com bocados vazios e fugazes de “cuRtura” que visam a sua distração – um prazer vazio, fugaz e irresponsável –, e logo tem que tornar a buscar, rastejante, essa DROGA.

Uma Arte legítma não objetiva distrair o seu leitor e fazê-lo esquecer-se do mundo real e de qual é o seu lugar nele; pelo contrário, ela o encoraja a olhar com olhos sóbrios e responsáveis para o mundo – com suas belezas e feiuras – e aponta para uma esperança de “justiça, paz e alegria” (Ap. Paulo em sua carta aos Romanos, no capítulo 14, verso 17 – “…o Reino de Deus não é comer nem beber, mas justiça, paz e gozo no Espírito Santo”). É o que disse Vinícios de Morais ao escrever:

“Fazer samba não é fazer piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração

“Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não”

Isso não significa que uma obra deva sempre possuir elementos de tristeza e esperança, mas uma Arte rica é a que comunica a verdade – e nisso está a sua verdadeira beleza.

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1Escolhi a Literatura como exemplo pela maior facilidade com exemplificações, talvez pelo que o Mario Quintana diz: “Todas as artes são manifestações diversas da poesia – inclusive, às vezes, a própria poesia.”

4 comentários sobre “O Artista, Seu Público e a Arte

  1. Ap. Paulo = Vinicius de Moraes (que dureza.)

    Vinicius de Moraes
    Samba da Bênção

    Falado

    Eu, por exemplo, o capitão do mato
    Vinicius de Moraes
    Poeta e diplomata
    O branco mais preto do Brasil
    Na linha direta de Xangô, saravá!
    A bênção, Senhora
    A maior ialorixá da Bahia
    Terra de Caymmi e João Gilberto
    A bênção, Pixinguinha
    Tu que choraste na flauta
    Todas as minhas mágoas de amor
    A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
    A bênção, Ismael Silva
    Sua bênção, Heitor dos Prazeres
    A bênção, Nelson Cavaquinho
    A bênção, Geraldo Pereira
    A bênção, meu bom Cyro Monteiro
    Você, sobrinho de Nonô
    A bênção, Noel, sua bênção, Ary
    A bênção, todos os grandes
    Sambistas do Brasil
    Branco, preto, mulato
    Lindo como a pele macia de Oxum
    A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
    Parceiro e amigo querido
    Que já viajaste tantas canções comigo
    E ainda há tantas por viajar
    A bênção, Carlinhos Lyra
    Parceiro cem por cento
    Você que une a ação ao sentimento
    E ao pensamento
    A bênção, a bênção, Baden Powell
    Amigo novo, parceiro novo
    Que fizeste este samba comigo
    A bênção, amigo
    A bênção, maestro Moacir Santos
    Não és um só, és tantos como
    O meu Brasil de todos os santos
    Inclusive meu São Sebastião
    Saravá! A bênção, que eu vou partir
    Eu vou ter que dizer adeus.

    • Prezado lopdeti,
      Aprecio a sua disponibilidade em expressar a sua opinião no meu blog. Considero-me honrado em ser achado digno de sua abertura para este diálogo. Então, vamos à minha réplica.
      Você diria que o governo de Fernando Collor como Presidente da República foi excelente, irrepreensível ao notar que foi sua a iniciativa de “enxugar” a máquina estatal e abrir o mercado brasileiro e permitir que a indústria automobilística se estabelecesse no Brasil depois da Ditadura Militar? Obviamente não, pois você estaria ignorando a recessão econômica que se seguiu, o confisco das cadernetas de poupança dos cidadãos, as denúncias de corrupção, etc, que culminaram com o processo de seu impeachment. Acontece que a realidade é muito mais complexa do que “preto e branco”. A queda do homem na sua pretensão de autonomia afetou todas as áreas da sua vida deixando marcas sobre todos os aspectos que em sua origem são à imagem e conforme a semelhança de Deus. Os homens, portanto, vivem um constante conflito por estarem experimentando, dentro do mundo de Deus, uma oposição entre o Reino de Deus e o Reino das Trevas. Experimentam o bom, agradável e perfeito em contraste com o mau, cruel e corrompido. As suas produções refletem, portanto, essa realidade, os conceitos formados a partir de suas vivências ordinárias e abstrações teóricas. Mesmo um homem que foi alcançado pela graça de Deus e que teve seu coração tocado, está em constante caminhada, “deixando as coisas que para trás ficam e avançando para aquelas que estão adiante”, sendo trabalhado pelo Espírito Santo até a realidade final, que só estará completa com a ressurreição do último dia.
      Não cabe a mim julgar, mas, certamente, no momento em que escreveu aqueles versos por você citados, Vinícius de Morais estava vivendo em trevas (não que ele não possa ter sido alcançado e se arrependido depois na sua vida, convertendo o seu coração a Cristo – não cabe a mim fazer esse julgamento). Mas essa situação de homem caído não o impediu de ver a beleza da Criação de Deus, alguns reflexos de Sua graça e ter alguns insights de como a realidade de Deus se estrutura. Sem contar que a própria cultura ocidental tem reconhecidos fundamentos judaico-cristãos que permeiam (embora hoje mais timidamente) o seu pensamento e formas de manifestação. Sendo assim, não podemos ser preconceituosos ao ponto de ignorar toda a obra de um artista porque a sua posição diante de Deus (ou de alguma outra questão) difere da nossa. E, além do mais, se alguém tem produzido alguma coisa, devemos nos lembrar de que “toda boa dádiva e todo dom perfeito vem lá do alto, descendo do Pai das Luzes…” ou, ainda, que Jesus “deu dons aos homens”… Se não reconhecermos isso, restam-nos duas opções – ou negamos cegamente que existe beleza fora do meio dito “gospel”; ou somos obrigados a aceitar que o homem, por si só ou pela “graça” do diabo conseguiu produzir algo bom. Isso serve não só para a Arte (que, injustamente, é a mais atacada pelos argumentos radicais e inocentes de muitos cristãos brasileiros), mas para, por exemplo, a invenção do avião, a descoberta da penicilina ou dos anestésicos, etc…

      Agora, muito mais grave do que isso que acabei de explicar é a sua interpretação do meu texto, inclusive, ignorando tudo o que foi escrito anteriormente e atendo-se a uma crítica infundada e injusta a respeito de um pequeno trecho mal interpretado do último parágrafo. Eu JAMAIS disse (ou diria) “Ap. Paulo = Vinicius de Morais”! Sem contar que o que comparei nem foi a música inteira “Samba da Bênção”, mas apenas duas estrofes de uma composição imensa! Li e reli o trecho e não consegui enxergar onde eu deixei esta impressão. Leia o texto de novo. Se, realmente, for essa a impressão deixada, peço desculpas e reescrevo-o.

      Novamente, agradeço a apreciação.

      • Caro Pedro,

        Temos a tendência de querer interferir no trabalho de Deus e de Seu Espírito. Quando dizemos que devemos descer alguns níveis para alcançar aqueles que, de outra forma, não seriam alcançados, estamos afirmando que o Espírito Santo de Deus não é capaz de fazê-lo; tentamos, assim, fazer por nós mesmo.

        Mas temo que, assim como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim também sejam de alguma sorte corrompidos os vossos sentidos, e se apartem da simplicidade que há em Cristo.
        2 Coríntios 11:3

        Que Deus em sua imensa misericórdia ilumine nosso coração para que possamos enxergar um Evangelho simples, verdadeiro e poderoso.

      • De fato, por vezes, vemos as palavras do apóstolo (“fiz-me de tolo para ganhar os tolos…”) mal interpretadas, como em aberrações do tipo “Céééu! Cééééuu!” no lugar de “Créééu! Crrrééééuu!”. Compreendo o seu zelo, perfeitamente – e é louvável que você o tenha. Mas que não venhamos a cair no erro de julgar cinicamente o próximo, depois de termos sofrido decepções com a Igreja – como eu mesmo o fiz muitas vezes. E acho que parte do princípio da solução é lembrarmos que somos partes do mesmo corpo, o qual pertence a Cristo!
        E, de fato, precisamos estar atentos, vigilantes, para que não sejamos corrompidos por este mundo corrupto; antes, precisamos permanecer firmes na fé (sabendo quem é Deus e quem nós somos diante dEle).

        Abraço!

        Obs.: Desculpe-me a demora em responder-te, a rotina acabou engolindo meu tempo para o mundo virtual…

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